sábado, 2 de outubro de 2010

Gênese Pagã - Capítulo I

CAPÍTULO UM

A forte chuva caía sobre a mata fechada. Adele correu o máximo que conseguiu, mas o peso em sua barriga a obrigou a parar mais uma vez para retomar o fôlego e controlar a forte dor no ventre. O estrondo de um trovão fez a criança saltar dentro dela.
- Te aquietes pequena, ainda não é chegada a tua hora! – ela acariciou a barriga sob o vestido encharcado que grudava em seu corpo.
Adele respirou fundo mais uma vez e caminhou rapidamente entre as árvores. Ouviu os cascos de cavalo que batiam nas poças d’água no chão de terra da estrada próxima. Prendeu a respiração e encostou-se a uma velha árvore. O tronco grosso exibia as marcas da idade e a sabedoria daquele ser. Adele sentiu o perfume da vida que havia ali e isso lhe trouxe uma súbita tranqüilidade. Encostada ao tronco, a jovem fechou os olhos sentindo o gosto doce da chuva que escorria pelos seus lábios.
- Acho que já se foram todas, senhor! – ela ouviu a voz de um dos homens a cavalo.
- Creio ter visto uma a correr por aqui. – uma outra voz masculina e grave falou alto no meio da chuva.
Adele ouviu um choro de mulher, mas não se atreveu a mexer-se detrás da árvore protetora.
- Levemos essa hoje. – uma terceira voz masculina se manifestou e foi interrompida por um relâmpago que encontrou uma árvore do outro lado da estrada.
Mais uma vez a criança se agitou tanto em seu ventre que Adele foi obrigada a se agachar para controlar a dor provocada pelo movimento brusco que a criança fez. Temia que a corrida e aquele estrondo forte e poderoso apressassem o nascimento da criança, não era a hora ainda, faltavam pelo menos mais duas luas pelos cálculos da mãe de Adele.
O som dos cavalos se distanciando fez o corpo da jovem relaxar e seu coração voltar a bater no compasso normal. A criança, entretanto, não parecia estar relaxada e sua barriga estava totalmente dura. Adele, então, se sentou sob a árvore e acariciou o ventre cantarolando uma música na velha língua...
A jovem Adele tinha apenas 17 anos e morava em uma pequena aldeia escondida no meio da floresta. Segundo sua mãe, uma mulher experiente, sábia e respeitada onde viviam, a aldeia fora criada por seus ancestrais oriundos de terras distantes, celtas. A velha língua, como chamavam aquela deixada como herança, fora se perdendo com o tempo, mas alguns membros eram sempre escolhidos para perpetuar o seu uso. Como ao longo dos anos outras aldeias se formaram também nas proximidades, a necessidade de comunicação obrigou o povo da aldeia de Adele a falar a língua comum... e, aos poucos, só alguns poucos ainda sabiam a língua ancestral. A mãe de Adele era uma delas e ensinara à filha canções que agradavam aos deuses. A canção que agora entoava para seu filho era aquela que agradava à Grande Deusa, que sua mãe chamava de Dana...
Lentamente a criança pareceu relaxar também e Adele encostou a cabeça na árvore e sorriu...
Naquela tarde, Adele e mais quatro jovens da aldeia tinham ido até o rio que eles chamavam de “verde” e que corria a dois quilômetros da aldeia. Elas levaram oferendas e “falaram” com a água, cantaram e dançaram para seus deuses pedindo proteção para a aldeia, saúde, boa colheita e os homens que desejavam... Delas, Adele era a única que não pedia pelo homem, pois já o encontrara e o filho que carregava era a prova de que os deuses aprovavam a união.
A chuva se transformou em uma fina garoa, que tornava o início da noite enevoado, Adele adorava aquela visão, parecia que os deuses cobriam carinhosamente a floresta com um tecido leve para que descansasse até que o sol voltasse a brilhar.
- Adele! Adele! – ela ouviu seu nome ser chamado por uma voz nervosa no meio das árvores.
Ela se esforçou para se levantar do chão. A roupa molhada a deixava ainda mais pesada. Agradeceu à velha árvore que a amparava cuidadosamente, enquanto se apoiava no tronco para se levantar.
- Adele! – a voz se aproximou.
- Estou aqui! – ela falou alto.
- Pelos deuses! O que fazes aqui? Quase me matas de preocupação! – o jovem a abraçou e ela se encostou em seu peito ouvindo o bater desesperado do coração dele.
- Alan... nos perseguiram... – ela falou olhando para os olhos verdes do pai de seu filho.
- Eu sei! – ele retirou uma capa que usava e a colocou sobre os ombros dela. – Eleonor chegou contando na aldeia... te procuro há tempos!
- Nosso bebé é que me forçou a parar... – ela sorriu segurando a barriga.
Os dois, então, caminharam por entre as árvores na direção da aldeia.
- Tua mãe disse-me que tinhas ido até o “verde”... nessas condições não deverias mais ir tão longe! – ele falava preocupado, seu cenho estava franzido e seus cabelos castanhos claros estavam encharcados.
- Fui ofertar as frutas doces que colhi para que nosso filho nasça bem... – ela falou se ajeitando sob os braços quentes dele.
Alan olhou para ela e sorriu.
- Não te preocupes... ficará tudo bem. – ele a beijou na testa.
Quando chegaram à aldeia a mãe de Adele estava à porta da casa feita de pedras com telhado de olmos e segurava um archote nas mãos. Ela olhou para a filha com preocupação.
- Adele! Onde estavas, pequena? – a mãe pegou um pano para que a jovem secasse os cabelos.
- Ela estava sob uma árvore... – Alan respondeu enquanto ajudava a mulher a tirar a roupa molhada.
- Nos perseguiram mamãe... – Adele olhou para a mãe que estava séria. – Estávamos no “verde” e ouvimos os gritos e os cavalos... Começaram a gritar um nome estranho... nos assustamos e fugimos...
- Quem eram eles, Adele? – Alan perguntou sério.
- Não sei! Não os vi! Corri sem olhar para trás... – ela disse entrando na tina de água quente que a mãe acabara de encher.
- Eleonor disse-nos que carregaram a rapariga Bruna. – a mãe de Adele falou se sentando ao lado da lareira de pedras.
- Eu... ouvi o choro dela... – Adele falou baixo, descobrira de quem era o choro. Depois de tirar a friagem do corpo, ela saiu da tina e Alan a cobriu com o linho ajudando-a a se secar. Ele passou a mão delicadamente pela barriga da mulher e sentiu o bebê que mexeu sentindo o toque dele. Adele segurou na mão dele e sorriu. – O bebé sentiu a energia da terra, mamãe! Ele se agitou tanto durante a tempestade que cheguei a pensar que queria sair-se para o mundo...
- Toma um pouco de infusão para aquecer a criança. – A mãe estendeu-lhe uma caneca de barro com a água fumegando e um perfume maravilhoso de ervas. A mãe de Adele era a especialista da aldeia em infusões.
O líquido desceu quente e o corpo da jovem imediatamente se aqueceu. Alan, depois de ajudar a mulher e de, também, se secar, se sentou ao lado da lareira e começou a amolar sua faca, tinha o olhar sério, pensativo.
- Amanhã precisamos buscar notícias de Bruna. – Gleide falou tomando um pouco do chá.
- Quem poderiam ser aqueles homens? – Adele perguntou olhando para dentro de sua caneca. – Por certo nos confundiram com outras, pois gritavam o nome “bruxas”... Será por isso que carregaram Bruna? Por certo se confundiram... – ela concluiu baixo.
- Não, pequena. Já me contaram sobre esses homens... – Gleide fitou as chamas da lareira. – Eles estiveram em uma aldeia aqui perto.
- A aldeia queimada? – Alan levantou os olhos verdes que brilhavam iluminados pelo fogo da lareira. Gleide olhou para ele, preocupada, e assentiu.

Dom Couto entrou nervoso na casa de pedras que era a maior da Vila dos Canetos e jogou o chapéu para o lado. Imediatamente seus escravos vieram em seu socorro ajudando-lhe a se livrar das roupas molhadas. Atrás dele entraram dois rapazes igualmente encharcados. Douglas e Diogo, seus filhos gêmeos de 21 anos. Os três estavam armados com suas pistolas e espadas elegantes, presentes da coroa portuguesa.
- Este lugar está a salpicar bruxas! – o homem de cerca de 45 anos com os cabelos castanhos encaracolados e que atingiam seus ombros falou irritado olhando para seus filhos. – E só conseguimos capturar uma?
- Papá, não sabemos se a rapariga é uma bruxa... ainda. – Diogo falou receoso.
- És um fraco, Diogo! Não viste que estavam a dançar às margens do rio? Elas riam e agitavam seus vestidos! – ele vociferou diante do filho.
- E encontramos cestos com produtos de bruxaria... – Douglas ajudou o pai.
- Eram somente frutas, Douglas! – Diogo riu e balançou a cabeça.
- E a chuva que mandaram sobre nossas cabeças? – Douglas encarou o irmão que era idêntico a ele, ambos eram altos com o corpo forte, os cabelos escuros que caíam sobre os ombros, os olhos quase negros e a pele clara. A diferença entre os dois estava na falta de um dedo em Douglas, seu polegar direito fora arrancado em um acidente que sofrera quando ainda era muito pequeno. A falta do dedo não comprometeu a habilidade dele, que aprendera a usar a espada com a mão esquerda e era muito bom, melhor que seu irmão destro.
Diogo apenas olhou para o irmão depois do comentário e riu saindo à procura de uma sopa quente para aquecer-lhe os ossos.
- Diogo deveria tornar-se padre. – Douglas falou bravo para a escrava que terminava de enxugá-lo.
Dom Couto voltou para a sala onde a mesa estava posta com pães e três pratos de sopa fumegante. Diogo já estava sentado devorando sua comida, quando o pai e o irmão se sentaram.
- Devemos ver se o padre já falou com a rapariga. – Dom Couto disse comendo uma grande colherada de sopa. – E não quero saber de piedade dessa vez. – ele olhou sério para o filho Diogo.
- De nada adiantou apiedar-me daquelas famílias... não acabamos por colocar fogo em tudo? – ele levantou os ombros.
- Mas me fazes perder a autoridade! – Couto bateu na mesa com força. – Estamos aqui para cumprir a missão divina de varrer os pagãos dessas florestas e não para nos importarmos com suas vidas!
- Como quiseres papá. – Diogo falou afastando o prato de sopa que havia terminado de comer.
- Tu és um cristão, filho! Deves orgulhar-te de ser responsável pela divulgação da fé verdadeira! – Dom Couto se acalmou e olhou para o filho. – Tua mãe ficaria orgulhosa de ti. – ele fez o sinal da cruz e olhou para cima.
- Posso retirar-me? – Diogo apenas olhou para seu pai sem qualquer mudança na expressão no rosto.
- Podes. – o pai falou sério e depois, olhando para Douglas, balançou a cabeça.
Uma hora mais tarde, o padre, um senhor de meia idade que usava a tonsura e um hábito preto longo que estava com a barra toda enlameada, apareceu esbaforido na casa de Dom Couto.
- Senhor... é melhor ires à câmara. – o padre falou mal levantando os olhos.
- Então, padre... conseguiste a confissão ou a conversão da nova rapariga? – ele perguntou sem olhar para o padre enquanto terminava de colocar a capa marrom sobre a roupa e pegar o chapéu preto de abas largas colocando-o na cabeça.
- Ela está inacessível, senhor. Quando o inquisidor virá? – o padre disse andando apressadamente ao lado de Dom Couto.
- Ele virá quando tivermos um bom número reunido, já me informou. – Dom Couto falou com a voz grave enquanto passavam por trás da pequena igreja da vila.
Dois homens guardavam a entrada de um porão que estava fechado com uma porta de madeira trancada por um enorme cadeado. Quando viram a figura imponente de Dom Couto, apressaram-se em destrancar a porta e abri-la.
O odor de sujeira vinha do lado de dentro e algumas pessoas gemiam. Dom Couto desceu a escada de madeira e entrou no corredor de terra onde havia várias celas iluminadas pelas pálidas chamas de archotes presos às paredes de terra. O sol nunca entrava ali, o cheiro era de umidade, urina e fezes. Vasilhas de barro estavam jogadas aos lados das celas. Eram usadas para distribuir a comida aos prisioneiros. No fundo da câmara, ao lado de uma forja, havia um homem robusto que martelava alguns grilhões sobre uma bigorna. Dom Couto se aproximou e o homem apenas apontou para uma das celas.
A jovem estava deitada no chão, encolhida, tremendo, sua boca estava roxa e a pele branca estava suja de lama. Ela delirava com febre.
- Grande Mãe me ajude... – ela falava muito baixo e sua voz tremia. – grande Dagda...
Dom Couto pediu para que abrissem a porta da cela.
- Por quem ela chama, padre? – ele olhou para o padre ao lado dele e ele levantou os ombros.
- O que fazemos aqui, senhor? – uma voz de mulher veio de uma cela em frente. – Não somos criminosos, não roubamos nada, não matamos ninguém...
Dom Couto se virou para a mulher e fez a pergunta secamente.
- És cristã? – ele a encarava.
- Eu... não sei, senhor... – a mulher se retraiu. Dom Couto riu alto e o som de seu riso ecoou pela câmara.
- Estás vendo? És uma pagã! Uma adoradora do demônio! – ele falou e deu as costas para a mulher, que com certeza não sabia a resposta que deveria dar. – Padre – ele se voltou novamente ao sacerdote. – Tire essa daqui e dê uma túnica seca, quando ela estiver melhor leve-a para falar comigo. – Ele olhou para a jovem jogada no chão, o vestido molhado e rasgado deixava à mostra um dos pequenos seios, que denunciavam que não deveria ter mais de 14 anos.
O padre, então, pediu a um dos guardas que o ajudasse a levar a jovem para a casa de uma beata e, com extrema facilidade, o homem ergueu a jovem miúda do chão e a levou para fora da câmara..

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