terça-feira, 20 de março de 2018

Uma reflexão para o dia de S. Patrício.

Olá!!
Hoje, posto aqui, meu conto O Carvalho e o Visco, escrito em 2013.
Uma reflexão sobre como sobrepujar uma crença e impor algo no lugar, como se todo o resto fosse falso, sem qualquer valor. Vivemos tempos sombrios novamente, nos quais a intolerância é muito grande, mas velada, como as metáforas usadas pelos grandes contadores de histórias para ensinar lições e impor verdades sem que os "ouvintes" se deem conta disso...
Espero que curtam esse conto. ;)
Beijos.


Angel Oak, um carvalho de aproximadamente 1400 anos localizado na Carolina do Sul, EUA. Foto: Lynn Whitt / Shutterstock.com
(imagem: Angel Oak, um carvalho de aproximadamente 1400 anos localizado na Carolina do Sul, EUA. Foto: Lynn Whitt / Shutterstock.com)

      O CARVALHO E O VISCO 



Sem qualquer surpresa, senti quando as lágrimas salgadas desceram pelo meu rosto fustigado pelas cinzas e ardentes por conta do calor abrasador da queimada. Nunca as palavras haviam me faltado antes e não poderia ser assim, afinal sou um homem que vive das palavras ditas, das histórias contadas, das canções cantadas, dos versos declamados, inflamados de paixão, recheados de verdades e fantasias. Sou um Bardo e neste ciclo da vida ainda me chamo Tailesin...
A missão de um bardo é fazer a história sobreviver, jogar palavras e canções ao vento, dar vida aos eventos e exaltar os feitos heroicos. Jamais a garganta de um bardo poderia contrair-se dessa maneira, impedindo que a voz seja libertada. Entretanto, meu espírito está contraído... tão apertado dentro de mim que chega a doer... uma dor pungente e aguda.
Sei que fui escolhido pelos deuses para assistir vários ciclos, ver a roda girar e aprender, mas essa aprendizagem não veio sem a dor.
Sou parte do povo que chamam de Celtas, uma semente das tribos de guerreiros e druidas. Nossos deuses são partes do que somos, tanto as boas quanto as más, assim como são parte dos bosques, das matas e dos mares. Eles caminham conosco, lutam ao nosso lado, nos inspiram, fortalecem, protegem e também erram, chateiam...
Somos guerreiros destemidos, fortes e honrados, mas que para muitos não passávamos de bárbaros a serem esmagados e dominados. Lutamos muitas batalhas. Primeiro entre nossas próprias tribos e foi essa nossa divisão que ajudou os invasores a vencerem as primeiras batalhas. Os romanos chegaram com aquilo que chamavam de legiões, exércitos que cresciam no campo, excepcionalmente organizados e magnificamente comandados. Usaram contra nós nossa maior fraqueza: a desunião, mas subestimaram a força e a honra de nossos guerreiros e a presença de nossos deuses.
Com Nuada, o grande Deus guerreiro, usando sua espada invencível, vimos invasores romanos caírem como frutas maduras. Impulsionados pela coragem de heróis e deuses como Cuchulainn e Lugh, os valorosos guerreiros celtas protegeram suas crenças e suas terras. A poderosa deusa Morrigan sobrevoou os campos, encorajando-os, e o sangue verteu no solo, mostrando aos invasores de que material somos feitos: duro e firme como o carvalho. E que nossos deuses não iriam se render.
Mas todo guerreiro sabe que os ciclos da vida são movidos a batalhas e que algumas são ganhas, outras, perdidas...
Divididas, muitas tribos foram derrotadas, dominadas, escravizadas.
Os romanos conquistaram, dizimaram, destruíram... Eram organizados, obedientes e muito numerosos, o que compensava sua falta de paixão e, aos poucos, foram vencendo nossas barreiras, superando as espadas de nossos guerreiros e empurrando nossos heróis através do véu em direção ao Outro Mundo.
Fomos buscar auxílio junto aos deuses dos bosques, das matas, dos animais, refugiando-nos em aldeias que estavam protegidas sob os olhares zelosos de Atho, Flidais e Cernunnos. Resistimos por muitas luas e verões...
Bosques foram queimados, a terra inutilizada, animais foram mortos. A tristeza dos deuses das matas foi também a nossa. Entretanto, acreditamos no girar da roda e nos ciclos. A deusa Ceridwen visitou a terra devastada, fertilizou, regenerou e tudo renasceu, purificado pela luz de Belenos.
As tribos podiam estar dominadas, mas nosso espírito era livre e mantivemos nossos deuses sempre perto, até que uma nova batalha veio ao nosso encontro.
Antes tivéssemos enfrentado uma batalha apenas de armas, na qual o sangue derramado sinalizaria a força de nossos guerreiros. Um caminho que sabíamos trilhar e para o qual estávamos sempre preparados.
Mas quando o vento salgado soprou, sabíamos que era uma mensagem de Manannán. Cavalgando sobre as águas, mais rápido que o vento, o deus do mar trouxe a notícia de que um perigo se aproximava e que fora pressagiado por Scatch. Os deuses se prepararam, assim como nossos espíritos. Entretanto, nenhum de nós estava pronto para o que viria.
A terra pulsou e as deusas da guerra, Macha, Morrigan e Badb se prepararam para a iminente batalha. Seus corpos metamorfoseados em grandes e agourentos corvos, que sobrevoavam os bosques e as aldeias onde nossas tribos resistentes ainda viviam...
Quantos ciclos de vida eu viver, lembrarei da chegada do invasor, pois acredito que deveria ter me preparado para os eventos que se seguiriam, assim como os nobres guerreiros e nossos amados deuses.
Esperávamos soldados organizados, armados, novas legiões, mas apenas um homem se aproximou da aldeia junto à colina, onde o fogo de Belenos ainda queimava. Não carregava espada, lança, machado ou escudo. Não era seguido por um exército. Usava apenas uma estranha túnica manchada, sandálias nos pés, um cajado na mão e pendurado no pescoço um símbolo entalhado em madeira, a cruz que muitos romanos usavam para fazer seus sacrifícios e punir homens. Caminhava com a confiança de quem é protegido pelos deuses, com passos firmes e olhos argutos.
O caminhante parou junto à aldeia, respirou fundo e seus olhos brilharam com um entusiasmo febril.
Eu sentia no peito a confusão e curiosidade dos deuses e também me perguntava que perigo aquele viajante solitário poderia representar. Os habitantes da aldeia dirigiram olhares curiosos e apreensivos para o visitante inesperado que, com um sorriso gentil, solicitou um pouco de água sentando-se em um banco perto de uma das casas.
Uma menina correu para buscar a água e eu, que estava sentado junto ao bosque, de onde tinha uma visão privilegiada da cena, notei que seus olhos espertos observavam a tudo ao seu redor. Achei que ele tinha algo de bardo em si, pois parecia buscar inspiração para contar alguma história, por isso o analisei mais cuidadosamente. Ele bebeu a água com uma calma irritante, quando terminou sorriu novamente e disse à menina:
— Deus a abençoe.
A menina o olhou e deu de ombros. Estavam acostumados a muitos deuses e que suas benesses podiam ser vistas pela abundância da colheita e do leite, do brilho sol e pela fertilidade das chuvas e do ventre das mulheres.
Minhas suspeitas de que se tratava de uma espécie de Bardo cresceram quando ele se posicionou e começou a falar:
— Quando vinha caminhando para cá, caí em um buraco, uma armadilha para javalis, acredito eu... – disse e logo havia várias pessoas a sua volta. Vendo que sua narrativa havia atraído espectadores, respirou fundo. – Havia espetos no chão de terra, mas pela graça de Deus, nenhum deles me atingiu. – Juntou as mãos e olhou para o alto. – Pedi ajuda, mas não havia ninguém no caminho. Ervas cresciam junto à parede de terra, mas quando tentei agarrar-me a uma delas, ela se partiu mostrando a fragilidade de suas raízes. Havia muitas daquelas plantas ali, mas nenhuma delas tinha força. – Gesticulou com dramaticidade. – Então me ajoelhei e rezei: Meu Deus, poderoso, és o Único e Verdadeiro, não sois como essas raízes fracas, és a grande raiz na qual coloco toda minha confiança...
A menina que lhe trouxera a água prendeu a respiração e se sentou aos pés do viajante e seus olhos infantis brilhavam de expectativa e curiosidade. Conheço meu povo e sei o quanto amam histórias, aventuras e narrativas de feitos heroicos. Ao que me pareceu, aquele homem também conhecia essa característica.
Uma estranha sensação se apoderou de mim enquanto o ouvia falar das plantas e do tal Deus Único e Verdadeiro. Foi como se pudesse ver o crescimento lento do visco, enroscando-se no tronco de um carvalho. A planta, que até então parece inofensiva, vai alimentando-se da energia vital da árvore sagrada, retirando-lhe a essência da vida, enfraquecendo-a por dentro, transformando seus galhos e tronco, deformando-os até tirar-lhe toda a majestade e lhe encobrindo de raízes, folhas e flores. O carvalho nunca mais é o mesmo quando atacado pelo visco e, muitas vezes, fica irreconhecível, confundindo-se com árvores menores e frágeis. A grande árvore morre por dentro, enquanto é ferida por fora.
Os habitantes da aldeia que já se aglomeravam ao redor do homem, pareciam não enxergar aquele perigo e participavam da narrativa com suas perguntas, sem saber que, assim, alimentavam a erva que iria roubar-lhes suas crenças.
— Por que não pediu auxílio a Dagda? Ceridwen? – A criança ingênua questionou e recebeu um afago nos cabelos. No rosto do visitante eu percebi que ele a enxergava como uma criatura digna de pena.
— Como... saiu do buraco? – Um rapaz perguntou interessado, mas desconfiado.
            O viajante sorriu e apertou a cruz que carregava, depois olhou para o alto, para o céu que cintilava com a luz de Belenos.
            Inevitavelmente, todos acompanharam seu olhar.
— Pedi auxílio àquele que verdadeiramente podia me socorrer: Deus Único e Verdadeiro. E ele me tirou de lá. – O homem afirmou e eu senti a tênue brisa que me alertou do perigo, fazendo um arrepio gelado correr da base da minha espinha até minha nuca. – Com Sua força e minha fé fui erguido como se flutuasse e colocado gentilmente fora da armadilha. – Narrou e eu ouvi a menina exclamar de admiração.
— Que deus o tirou de lá? – Um rapaz perguntou num misto de curiosidade e desconfiança.
— Só há um Deus. Ele governa sobre todos, criou tudo, tudo vê e tudo sabe. Ele é como a raiz forte que nos ajuda a sair de uma armadilha. Vejam só! Eu tinha tantas raízes a minha volta, mas nenhuma delas ofereceu-me a segurança ou me livrou do perigo. Para que servem então tantas raízes? – Ele se ergueu empolgado e eu senti que realmente havia paixão em seu espírito e que ele acreditava naquilo que comunicava, como eu acredito no poder da Grande Mãe...
            Os habitantes se entreolharam como se o homem estivesse louco e, por um instante, tive a esperança de que não havia motivos para me preocupar e que nossos deuses estariam seguros, mas então o homem continuou:
— Vocês conhecem os romanos? – Perguntou e eu imaginei onde ele desejava chegar, mas o fato de citar aqueles que derrotaram nossas tribos já mostrava que ele sabia muito bem onde cutucar uma velha ferida.
Embora inúmeras festas de Beltane tivessem acontecido desde que nosso Povo foi dominado pelos romanos, havia uma marca indelével que corria em nosso sangue, aquela que fere o espírito cada vez que é lembrada.
Devemos sempre nos lembrar dos fatos do passado, afinal nossos antepassados andaram por lá antes de atravessarem o véu para o Outro Mundo, mas nunca devemos andar para trás. É assim que funcionam os ciclos.
O estranho viajante leu nos olhos e expressões de seus expectadores o efeito de sua pergunta e não disfarçou sua satisfação.
— Então, não preciso lhes contar sobre a coragem deles e sua força. – Completou ignorando alguns olhares um tanto hostis. Era de admirar a determinação daquele homem em passar uma mensagem. – Eles eram como vocês, pagãos. Adoravam falsos deuses que acreditavam lhes dar suas conquistas, sua fertilidade, fartura... – ele sorriu balançando lentamente a cabeça como que se apiedando daquele sentimento.
— Nossos deuses não são falsos! – O jovem desconfiado arriscou irritado e eu senti novamente aquela centelha de esperança de que a força de nosso Povo não iria deixar o grande carvalho ser aprisionado pelo visco.
O viajante então se moveu lentamente apoiando-se em seu cajado. O grupo que o ouvia, intrigado, o seguiu.
Eu percebi para onde ele se dirigia e naquele momento soube que aquele homem sabia muitas coisas sobre as crenças de nosso povo. Suspeitei até que algum druida ou bardo o tivessem formado, mas aquilo seria uma verdade dolorosa demais.
O homem caminhou e eu me ocultei um pouco entre as árvores quando atravessou a trilha perto de onde eu estava. A pequena menina saltitava animada logo atrás dele, como uma ovelha.
Todos pararam quando o estranho chegou junto ao local sagrado, dedicado a Crom-Cruach. Uma grande pedra entalhada circundada por pequenas lajes demarcava o local, onde pequenos animais eram sacrificados em troca de uma boa colheita.  Meu coração acelerou e depois se comprimiu ao pressentir o que viria e pedi à minha amada deusa Brigith que ofuscasse minha visão naquele momento, mas ela desejou que eu testemunhasse aquilo.
O homem se aproximou ainda mais da pedra de Crom e o Povo prendeu a respiração.
— Um deus de pedra não pode ser verdadeiro... – ele disse e sua voz ficou momentaneamente soturna, o que fez os pelos de minha nuca arrepiarem novamente. Ele conhecia nossos deuses e estava desdenhando deles.
O velho Carvalho estava sendo esmagado lentamente, mas com força...
A lembrança do que veio a seguir, até hoje turva de lágrimas meus olhos. O estranho ergueu seu cajado na direção do céu e disse com voz potente.
— Deus poderoso! Ajude esse seu servo a mostrar a esses pagãos todo Seu poder e que se convertam! – Rogou enquanto as pessoas se mantinham um pouco afastadas e visivelmente temerosas. – Se esse ser a quem chamam de deus Crom for falso, que o Senhor com seu poder infinito, destrua esse ídolo de pedra e assim abra os olhos desses infelizes!
Infelizes?! Eu exclamei em silêncio. Nosso povo é feliz! Adora festejar, dançar, cantar! Questionei a sanidade daquele homem naquele momento, mas uma relutância levou minhas mãos a tremerem levemente. A pedra de Crom jazia ali naquela pequena colina desde tempos ancestrais. Chuva e vento já até haviam trabalhado sua forma, entalhando novas figuras em sua face, formando pequenos sulcos em sua base. Certamente ela deveria estar fragilizada.
O viajante era muito mais esperto do que eu havia avaliado. Eu desejei sair correndo e alertar meus irmãos da tribo, mas senti uma mão leve que pressionou suavemente meu ombro. Virei-me e me encantei pelo olhar doce e afetuoso. Mal podia acreditar que minha adorava deusa Bright estava ali, ao meu lado, com a mão sobre meu ombro, prendendo-me àquele lugar, impedindo-me de me erguer e interferir.
— O destino está traçado, meu querido bardo... observe e registre, pois suas palavras terão o poder de fazer germinar novamente a semente... – a voz era suave como uma brisa e perfumada como o orvalho. Minha poderosa deusa, inspiradora dos bardos, senhora do fogo, da luz e da paz...  Como poderia negar-lhe algum pedido?
O som das exclamações me fez virar para cena na colina novamente. O estranho enfiara a ponta de seu cajado em uma das fissuras da pedra. Eu prendi a respiração. Então um forte estrondo ecoou pelo meio das árvores, seguido dos gritos assustados, de manifestações indignadas e vozes admiradas quando a pedra de Crom, partindo-se em pedaços, sumiu das vistas.
O homem ficou ali parado e em seguida ajoelhou-se e, erguendo as mãos para o alto, clamou:
— Obrigado, meu Senhor!
Depois olhou para as pessoas que estavam muito atordoadas pelo que acabara de acontecer e disse com uma calma confiante e um sorriso vitorioso:
— Meu Deus é o Único e o Poderoso. Provou a vocês que não devem deixar que falsos deuses roubem seus espíritos... Se algum daqueles que vocês chamam de deuses fizer essa pedra erguer-se inteira novamente sigam seu caminho, mas se isso não acontecer, eu os convido ao batismo e a juntarem-se à Verdadeira fé. Prometo, com a graça de Deus, que suas almas poderão se livrar do inferno se aceitarem Deus como o Único e Verdadeiro... – havia emoção em sua voz e meu Povo o olhava como se vissem uma criatura de várias cabeças.
Minha Deusa havia partido e me deixado ali sozinho... observar e registrar... foi essa a missão que ela me deu. Todo Bardo sabe que não era tradição em nossas tribos deixar as proezas escritas, pois sempre estivemos ligados ao poder das palavras ditas e na capacidade dos homens em levá-las adiante. Entretanto, desde a invasão dos romanos que eu, Taliesin, me vi confrontado com uma realidade preocupante: aqueles que registravam seus feitos, histórias, costumes e crenças, seriam mais longevos. E era isso que minha amada deusa Bright esperava de mim. Com o gosto salgado das lágrimas nos lábios retirei de minha bolsa a pena e a pele do javali branco, roguei à Brigh que continuasse ao meu lado, pedi à Grande Mãe que protegesse o Carvalho, implorei a Dagda que alimentasse meu espírito e desde então, comecei a registrar...
Desde o dia em que a pedra de Crom foi destruída, o Povo esmoreceu. Alguns olhavam para a colina com desolação, outros ainda tentaram implorar aos deuses que restituíssem a grande pedra à sua forma original, outros se deixaram envolver pelas histórias do viajante e pela demonstração de poder do tal Deus Único e Verdadeiro. Então o viajante ficou...
O visco cresceu envolvendo o carvalho, tirando-lhe a vitalidade e, pouco a pouco, meu Povo foi cedendo e se deixando banhar no rio, enquanto o estranho viajante os oferecia ao seu Deus.
Eu não voltei à aldeia. Preferi ficar de longe, observar e registrar. O fogo de Belenos apagou-se por muito tempo, nossos deuses foram esmagados pelas palavras, humilhados e afastados...
A presença deles ainda estava nos bosques, nas matas, mas os mortais não os chamavam e eles se recolheram. Alguns simplesmente desapareceram, decidindo não mais atravessar o véu e permanecer no Outro Mundo, talvez refugiando-se em Hy-Brasil.
Descobri que os seguidores do Deus Único e Verdadeiro eram chamados de cristãos e que se espalhavam tal como a hera sobre os campos. Aldeias foram sucumbindo. Cruzes foram espalhadas por toda parte. Chegaram muito mais homens iguais àquele primeiro e eram chamados de sacerdotes, padres e se espalharam como ervas daninhas. Eles afastaram nossos druidas, que eram chamados pelos invasores de: serpentes... Muitos druidas resistiram o quanto conseguiram antes de desaparecerem sem deixar rastros, usando sua poderosa magia que era abertamente condenada pelos padres. Alguns druidas juntaram-se àqueles homens e trocaram nosso carvalho pelo visco. Durante muito tempo eu procurei justificar sua traição, imaginando que faziam aquilo para se aproximarem dos inimigos e eliminá-los, mas não foi assim que aconteceu...
            Os trevos que cresciam entre o mato foram transformados no símbolo da trindade cristã para meu Povo, pois explicava a possibilidade do Deus Único ser três ao mesmo tempo. O três era sagrado para nosso Povo e talvez por isso tenham aceitado tão facilmente essa possibilidade tríplice masculina, renegando a Deusa tríplice que sempre esteve ao nosso lado.
Muitas de nossas deusas foram mortas, outras reduzidas a divindades menos importantes que os sacerdotes chamavam de santos. À minha amada Bright foi concedida a “honra” de se tornar santa e continuar perto de nossas tribos. Ganhou novo nome, Brígida, uma história cheia daquilo que chamavam de milagres foi inventada e estátuas suas foram feitas, mas nenhuma delas conseguiu refletir toda a beleza, suavidade e luz que minha amada deusa possuía. Eu chorei pela minha Bright e por ela não parei de registrar.
Calei-me como Bardo, mas as palavras, ao invés de saírem pelos meus lábios, nascem de minha mão e da pena que ela segura.
Fui escolhido pelos deuses para viver muitos ciclos e às vezes rogo-lhes que me deixem partir para o Outro Mundo, mas eles ainda precisam de mim e eu sinto isso cada vez com mais intensidade.
Muitos verões se passaram. Muitos mesmo... Florestas foram destruídas e eu temi pelo refúgio dos deuses.
Assisti a Igreja esmagar aqueles que se opunham à suas doutrinas. Mulheres foram sacrificadas em fogueiras, torturadas, afogadas, por que tentaram manter uma conexão com nossos deuses e deusas. Templos foram erguidos e encerraram dentro daquelas paredes os rituais e celebrações.
As lágrimas da Grande Mãe se derramam abundantemente sobre a terra. Sei que as sementes do velho Carvalho vão germinar novamente e as estou semeando como me foi pedido.
O visco se apoderou de nossa árvore sagrada, mas ele não pode destruí-la, pois se o fizer, ele também irá morrer. Ele mantém o tronco soberbo aprisionado, acredita que o dominou completamente, que as novas formas que nele desenhou vão ficar ali para sempre, mas eu sinto a seiva do Carvalho pulsar... ela vive e retira da terra a força que precisa para renascer.
Mais um ciclo vai terminar e as sementes vão germinar. Sinto a brisa fresca e a luz de Bright a me iluminar. Para os deuses, o tempo dos homens nada significa e a Grande Mãe, paciente, aguarda...
Sou um Bardo, ou como muitos gostam de me chamar neste ciclo, um contador de histórias, poeta, artista... Alguns riem quando ouvem meu nome. Neste ciclo me chamo Tailiesin e a força dos deuses pulsa em meu espírito.

(Simone O. Marques - 2013)